sábado, 27 de agosto de 2011

Os Dez Mandamentos do Pesquisador/Estudante


















Nestes ultimos meses estou debruçado na construção da fundamentação teórica de minha tese de doutorado, o que parece um caledoscópio de imagens, quanto mais refletimos sobre o ponto, discutimos frente as imagens trazidas no texto, mais apresentam, a cada movimento, combinações variadas e "agradáveis" de efeito visual. É preciso gastar muitos dias e noites ainda!
Paralelo a este "dramático mundo das (in)certezas acadêmicas", encontrei ainda da época que cursava no mestrado a disciplina de Metodologia da Pesquisa "Os Dez Mandamentos do Pesquisador" (autoria desconhecida), que publicizo aos meus orientandos sempre que encontro neles muitas (in)certezas.

Achei por bem, publicá-lo por aqui.


1. Não cobiçarás o tema do teu próximo, porque a grama do jardim do teu vizinho não é mais verde.

2. Não pesquisarás o que está apenas na tua cabeça, a menos que o estudo seja precisamente sobre ela.

3. Não investigarás tema sem fonte, porque a tua tarefa é fazer os dois se comunicarem.

4. Não te perderás em meio à falta ou ao excesso de planejamento, a menos que a tua genialidade te permita prescindir dele.

5. Não desprezarás a rotina, porque ela pode te liberar para o exercício da criatividade.

6. Não menosprezarás as normas, a menos que pretendás transformá-las.

7. Não te julgarás incompetente, porque não o és, até prova em contrário.

8. Não escreverás uma obra-prima, a menos que já estejas maduro para produzi-la.

9. Não farás uma colcha de retalhos, porque és capaz de um trabalho verdadeiramente intelectual.

10. Não ignorarás os teus leitores, a menos que te aches mais importante do que eles.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Entre a PAIXÃO e a RAZÃO - Quem comanda os destinos do homem?


(Antonio Vivaldi - "Summer" from four seasons)




O que há na vida senão emoção (paixão) e razão? A Sociologia já suscitou um debate questionador acerca deste aparente conflito, na sua formulação dicotômica "paixão-razão", que teria provocado até o pensamento sociológico do alemão Max Weber (1864-1920), que já acreditava que "é por meio da paixão ou da fé que o homem se relaciona com os valores" (SAINT-PIERRE, H. Max Weber: entre a paixão e a razão. 2004, p. 9). Assim, a relação do homem com os valores demarca o curso da análise weberiana. Tanto nos trabalhos metodológicos de Weber como nos seus escritos políticos, pode-se notar a tensão permanente entre a razão e a paixão ou fé, o que dificulta ainda mais a análise da já intrincada relação entre ciência e ação no pensamento weberiano.

O que prova a importância e a decisiva complexidade das ciências sociais a partir do século XIX, e, a posição epistemológica (teoria do conhecimento) de Max Weber para entender o homem enquanto alguém que busca e alimenta o conhecimento é seu delineamento quanto a duas condições fundamentais: a erradicação dos juízos de valor do discurso científico e a exigência de verificação empírica dos enunciados científicos por meio das explicações causais. Simplificando as coisas, digamos que, o conhecimento racional é um pressuposto que nasce e (con)vive com o conhecimento passional, ou seja, a paixão (fé) é constituída de um outro elemento valorativo-cultural (a razão), que a partir da realidade é recortada para destacar o objeto de análise (racional) e acaba representando ao longo da vida um "significado cultural" (SAINT-PIERRE, 2004, p. 20).

Neste caso, nossas escolhas não são científicas (juízo de valor = pluralidade de valores e escolhas humanas), mas a análise é produto da racionalidade, que origina os pressupostos do conhecimento científico, nisto, dizemos que razão-paixão são elementos intrínsecos na lógica weberiana. O tipo ideal weberiano, sintetiza a relação entre os limites empíricos para generalização dos resultados, os limites da validade dos próprios conceitos e a vigência dos problemas formulados pelo interesse do sujeito (que determinou esses limites em sociedade, a partir da paixão, mais também da razão), o que a cultura, a religião, o direito etc. determinam como sendo "os valores".

Para ilustrar tão intrínseca relação entre "paixão-razão" não quisemos trazer um exemplo de casal enamorado das novelas etc. (poderia parecer uma babaquice), mas trazer um exemplo musical que tem a narrativa concreta daquilo que a dança harmônica entre as paixões humanas e a racionalidade possuem.

The Four Seasons (Italian: Le quattro stagioni) é um conjunto de quatro concertos para violino de Antonio Vivaldi. Composta em 1723, As Quatro Estações é o trabalho mais conhecido de Vivaldi e está entre as peças mais populares de música barroca. A harmonia de cada concerto é variada, cada um lembra uma temporada. Por exemplo, "Winter" lembra a chuva gelada, enquanto que "Summer" (do vídeo acima) evoca uma tempestade em seu movimento final, razão pela qual o movimento é muitas vezes apelidado de "Storm".

Dos sentimentos humanos da melancolia ou alegria dos fenômenos da natureza, nasce a graciosidade de um concerto, que ora esboça os sentimentos (paixão) ora os desejos e pensamentos racionais da humanidade diante da natureza e de seus fenômenos, por exemplo, como uma tempestade com seus altos e baixos, além dos seus conflitos interiores (por exemplo, quando nascem e se desenvolvem: ciências da natureza X ciências do espírito - humanas). Ao ouvir The Four Seasons (com um pouco de atenção) dá para se perceber a dialética musical entre a paixão e a razão, entre os fenômenos da natureza e do espírito, entre os semblantes singelos (suaves) e os olhares severos (e até de agressivos) dos músicos, lutas entre paixão-razão, que revelam ao longo do concerto a harmonia perfeita da peça de Vivaldi!


Afinal, os pêndulos (paixão-razão) da vida humana vivem desafiando os dias com a enaltação dos sentidos, pois somos todos homens e mulheres buscando o sentido dos nossos destinos na escadaria do mundo.

Boa música a todos!

(M.Eµfrasıø)

sábado, 25 de junho de 2011

Decreto Matinal



Um pequeno poema trazido das entranhas do ser, nestes tempos onde os sonhos se enamoram das tempestades. Neste caso, felizmente a calmaria nasce do encontro dos desejos e dos gestos felizes dos momentos marcantes e dos muitos lugares ... pois a felicidade é um estado de espírito!


DECRETO MATINAL

Fica decretado que não mais acordarei
que as notícias serão maduras
o sol não terá mais orgulho
e a verdade uma constante.
Aquele cinzeiro cheio de tocos abandonados
as vidas serão fustigadas
as ruas ameaçadas
as mulheres descabeladas
os homens moralizados.
Que este decreto viva
como os dias do agosto choroso.

(Marcelo Eµfrasıø)

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Tensões políticas e culturais em Rê Bordosa













É com alegria que divulgo a publicação do livro do meu amigo e colega de doutorado Yuri Saladino, pesquisador, historiador e cientista social antenado com os muitos discursos simbólicos que nascem das entrelinhas dos espaços urbanos. Nesta publicação ele trata do universo político e cultural do personagem Rê Bordosa de Angeli. Quem tiver interesse na aquisição da obra: http://www.marcadefantasia.com/resenhas/livros/rebordosa.htm

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O trabalho de Angeli tem suscitado inúmeras investigações acadêmicas, o que confirma a importância de sua criação. Autor de incontáveis e marcantes personagens das tiras humorísticas brasileiras, foi com Rê Bordosa que Angeli criou um vínculo indissociável com seu público, a ponto de, mesmo tendo matado a personagem, ter que retomá-la, numa espécie de memorial ou diário.

O livro de Yuri Saladino, oriundo de sua dissertação de Mestrado, debruça-se sobre a obra de Angeli para estudar a construção artístico-cultural expressa nas histórias em quadrinhos de Rê Bordosa e, por meio delas, refletir sobre o projeto político e cultural do autor. Rê Bordosa surgiu em 4 de abril de 1984 na série de tiras em quadrinhos Chiclete com Banana, do jornal Folha de S. Paulo, tendo como cenário o universo urbano paulistano da década de 1980.

Para Yuri, a personagem é uma sátira sobre o gênero feminino pós-Revolução Sexual, que tinha como pano de fundo um ambiente social bastante efervescente em termos sócio-culturais. O universo “angeliano” do qual Rê Bordosa faz parte reflete sobre esse período, quando o debate entre a modernidade e a pós-modernidade estava na ordem do dia.

Yuri reforça que o cotidiano no qual a personagem se insere é marcado pela crise dos valores modernos e pela fragmentação das identidades culturais que refletia o deslocamento do sujeito moderno e a valorização do momento presente e do hedonismo. Nesse sentido, o estudo reflete em que medida e por qual direcionamento esta personagem, enquanto construção artístico-cultural, representou uma crítica social frente ao contexto dos anos 1980 no Brasil.
Como afirma o autor, a pesquisa discute o caráter crítico do projeto artístico de Angeli, bem como situa Rê Bordosa a partir dos seus diálogos, seu comportamento e seu modo de vida: “Procuraremos analisar a personagem Rê Bordosa como sendo uma problematização sobre esse contexto social e suas tensões culturais”, conclui Yuri.

H. Magalhães

terça-feira, 14 de junho de 2011

"Diálogo entre la razón y la fe" - Entre o Direito e a Religião, onde fica a ética?



O célebre encontro entre “BENEDICTO XVI & HABERMAS” - Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI) e Jürgen Habermas em 2004, que culminou na publicação do livro "A dialética da secularização - sobre razão e religião" é de grande valia para entender a abordagem doa alemães, teólogo cardeal Ratzinger sobre os princípios que fundamentam a moral do Estado democrático e o filósofo Habermas sobre a questão da constituição dos espaços públicos e a possível dificuldade existente da unidade entre razão e religião para consagração dos direitos do homem (discussão já iniciada nas teses de Feuerbach e com Marx).

Claro que aqui não se trata de uma leitura densa, afinal num blog não se propõe um "tratado filosófico” (inclusive em função das minhas limitações), mas se constitui em rápidos comentários que procuram instigar os pensamentos do leitor. Como nas notas que seguem, a começar pela seguinte notícia:

Em 4 de mayo de 2005, o Jornal "La Nacion" anunciava:

Diálogo entre la razón y la fe - El Papa Benedicto XVI y el filósofo Habermas discuten dos visiones para abordar el mundo!

"El entonces cardenal Joseph Ratzinger, actual papa Benedicto XVI, y el filósofo Jürgen Habermas, profesor de la escuela de Francfort y padre del "patriotismo constitucional", celebraron el 19 de enero de 2004, en la Academia Católica de Baviera, en Munich, un diálogo sobre los fundamentos morales prepolíticos del Estado liberal, basándose en las fuentes de la razón y de la fe. Las diferentes posiciones de uno y otro respecto de las raíces de la legitimidad del Estado democrático pusieron de relieve la oposición entre revelación y razón. Aunque también mostraron coincidencias, como la necesidad de controlar, por medio de lo que Habermas califica como aprendizaje recíproco entre razón y fe, los peligros que la religión o la razón pueden acarrear a los derechos del hombre. LA NACION ofrece aquí los textos completos leídos por Habermas y Ratzinger en el memorable debate de Munich. Lo hace como oportuna contribución a una de las cuestiones fundamentales de la cultura en el tercer milenio". (Disponível em: http://www.lanacion.com.ar/704223)


A dialética enquanto categoria filosófica é tão polissêmica em sua carga conceitual e na sua empregabilidade contextual, que só procurando resumir a expressão a idéia de “contradição”; “complementaridade”, “mudança” etc. para entender o termo em sua riqueza conceitual, afinal há uma infinidade de pensadores da antiguidade à contemporaneidade que absolvem sua potencialidade. No entanto, no caso de Bento XVI e Habermas quando utilizam a dialética, eles nos propõem com a categoria hegeliana (filosofia idealista), que podemos retirar alguns aspectos essenciais para nossa reflexão acerca da razão e da religião, além da categoria que deve permear as duas, a questão ÉTICA (política).

Nos artigos que foram capitulados e publicados no livro “A dialética da secularização” – intitulados “Fundamentos morais pré-políticos de um Estado Liberal” (Joseph Ratzinger) e “Fundamentos Pré-Políticos do Estado de Direito Democrático” (Jürgen Habermas), os dois, um teólogo e o outro filósofo, apresentam a preocupação em conciliar os aspectos superestruturais antagônicos como diria a teoria marxista, sobre a razão e a religião. Apesar das posições antagônicas aqui vamos procurar uma conciliação teórica entre dois grandes ícones da intelectualidade na modernidade.

Este livro escrito a seis mãos, trata-se de uma critica a visão do mundo moderno e do “Estado ineficiente”, e tem como interlocutor nesse debate, outro filósofo alemão Böckenförde. Para entender o diálogo entre os pensadores e a necessidade da correlação entre razão e fé, os três apresentam um discurso no qual o Estado é visto como problemático em função de sua ineficiência, principalmente por conta da sua incapacidade em conservar os valores e pressupostos que o criou. Nestes termos, se pergunta se a religião teria o condão de trazer as garantias para sanar esse problema atual do modelo político, sendo possível, será que há condições de definir uma nova aliança entre razão e fé, como resposta ao conflito institucional que aparece nos modelos jurídicos atuais?

Para Habermas há condições para se estabelecer uma nova maneira de relacionar a razão e a fé, com o objetivo de sanar a imobilidade da razão moderna frente ao germe que o consome, por exemplo, os valores imorais que se encontram na política e no direito, fruto de uma razão corrompida. Sendo ele, a síntese da fé e da razão, construída pela filosofia agostiniana e tomista foi esquecida pela época moderna, que, por outro lado, soube apropriar-se criticamente da razão grega, mas não conservou os conhecimentos e os valores judaico-cristãos da salvação, que trazem a autenticidade das idéias sobre revelação e irmandade. Como solução para essa “crise” paradigmática de ausência dos valores patrísticos, aquele filósofo alemão procura resgatar as experiências cristãs dos primeiros séculos em sua historicidade para que a racionalidade secular re-encontre consigo mesma, criando uma unidade de pensamento ético entre Atenas e Jerusalém, sem negar que tais fundamentos construíram a identidade do pensamento Ocidental. Só nestes termos, segundo Habermas, há condições de estabelecer um pensamento relativista entre a razão pura e a fé incondicional.

Enquanto isso o cardeal Ratzinger rebate o pensamento habermasiano ao defender que desde que São João proclamou a chegada do Logos – “No princípio existia o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1,1), que se percebe que a apropriação da razão grega tem uma necessidade intrínseca, afinal afirma ele, o Deus dos filósofos é o ente divino da História, que participa da caminhada até então. Segundo a teóloga Eneida Jacobsen (Protestantismo em Revista, 2010) “Ratzinger afirma que a Igreja Católica até hoje tem feito uso da razão natural para dialogar com a sociedade secular e outras comunidades religiosas. Todavia, com a geral aceitação da teoria da evolução, a natureza passou a não ser mais vista como racional, levando à que a ideia de um direito natural perdesse sua força”.

Neste sentido, Jürgen Habermas busca uma conciliação entre a razão secularizada e “iluminista” e a razão teológica, como saída para a crise de identidade entre fé e razão, no entanto, essa aliança é construída sob bases antagônicas. O que se evidencia desta problemática categorial é que a leitura de Habermas tem por objetivo desenvolver um debate acerca do espaço de constituição da esfera pública (pela razão e pela fé que inspira ou deveria inspirar, por exemplo, a questão do Estado moderno) a partir da liberdade da pessoa humana (cujos valores são a razão e/ou a fé) e de sua responsabilidade social pela via democrática (cidadania planetária), sendo imprescindível neste percurso o exercício do diálogo (entre razão e fé) que promove a intersubjetividade como promotora da cidadania. No entanto, sua preocupação com as mudanças ocorridas no cenário capitalista burguês, principalmente no âmbito das mídias como uma nova configuração para a publicidade fizeram com que a esfera pública tenha se tornando uma oposição à opinião pública, causando a decomposição entre a dimensão pública em relação à dimensão privada, com seus interesses individuais e patrimoniais (que geram desigualdade, pobreza e desumanização do outro), e que estabelecem uma condição denunciada tanto pelo filósofo quanto pelo Papa teólogo, representada pela questão da ausência de ética nas relações humanas e na política.

Propõe Habermas em última instância uma subordinação da “razão teológica” à autoridade da razão secular, não em função do caráter religioso da subordinação de Deus à razão de natureza transcendente, mas da apropriação dos valores que cada categoria de pensamento possui para exaltação do homem e da sua condição humana.

A questão continua em aberto visto que o ateísmo não se subordina ao teísmo e às suas razões transcendentais, nesta caso, continua ao longo dos tempos a aparecer como uma forte tendência de que a questão de Deus não é meramente teórica, ela é prática, com todas as conseqüências que sua “prática” tem em nossas vidas. Daí que a cidadania (exercício de direitos) não deve ser permeada por subterfúgios ou interesses individuais, conforme propôs a lógica capitalista moderno-racionalista, mas uma inserção do homem na sua condição humana que o torna parceiro dos outros homens, cuja autenticidade se faz em expressões institucionais e em relações ateísta ou deísta de co-responsabilidade e co-cidadania, conforme fizeram, por exemplo, os primeiros cristãos nas catacumbas, no século I  d. C.,  prezavando por atitudes de razão e fé, afinal “Não havia nenhum necessitado entre eles, porque todos os que possuíam campos ou casas, vendendo-os, traziam o preço do que vendiam, depunham-no aos pés dos apóstolos e distribuía-se por cada um segundo a sua necessidade (At 4,34-35).

Não se trata aqui de uma resenha da "Dialética da secularização", mas uma modesta reflexão sobre a contribuição da filosofia habermasiana para entender a ética, nestes tempos “Pós”-Modernos, que também envolvem todas as teias de relações sociais!



Observação: Na foto, o encontro em 19 janeiro de 2004 do filósofo Jürgen Habermas e o cardeal Ratzinger (atual Papa Bento XVI) na Academia Católica da Baviera, em Munique, no qual se discutiram "as bases pré-políticas e morais do Estado democrático".

domingo, 5 de junho de 2011

Pensar as "tessituras da modernidade"







Depois que minha colega e amiga Professora Fernanda, que ministra aulas de Linguagem e Argumentação Jurídica e Metodologia Científica, solicitou de seus alunos do Curso de Direito da FACISA e da UEPB a leitura, resenha e prova sobre o livro "Tessituras da Modernidade: entre o público e o privado", achei por bem trazer uma pequena apresentação da obra. Neste caso, essa minha leitura sobre o livro que produzimos, eu e minha esposa, não se trata de resenha ou resumo, mas apenas uma apresentação daquilo que pode ser encontrado na obra, para aqueles que tem interesse em investigar sobre os meandros dos espaços da modernidade a partir das instituições sociais (privadas e públicas), particularmente com a questão de gênero e do direito político.

O livro “Tessituras da Modernidade” acabou sendo o resultado de pesquisa acerca do fenômeno da modernidade expresso em tessituras, contextos e recortes dos espaços privados e públicos da História de nossas instituições sociais. Não há na obra nenhuma idéia conclusa e nem determinada, apenas algumas pistas de leituras interdisciplinares acerca das diferentes conjunturas sociais a partir de uma perspectiva teórica da historiografia cultural para entender as transformações no espaço privado, particularmente no âmbito da família, das identidades, do gênero feminino e das realidades do trabalho, bem como uma abordagem do espaço público na perspectiva da zetética jurídica para estudar as instituições políticas e jurídicas, a partir da idéia de participação política e das ações de promoção dos direitos sociais, que acabam sendo expressões das ações em trânsito dos espaços públicos e privados dos sujeitos sociais.

Assim, na primeira parte intitulada "As tessituras da identidade, gênero e modernidade sob os olhares da historiografia cultural", são evidenciados aspectos como a constuição dos espaços em que o gênero feminino passa a situar-se historicamente a partir das lutas pela conquista de espaços, desde o período neolítico, quando das experiências de sociedades matriarcais puderam conceber as primeiras experiências de direito maternal, até as diferentes constituições de valores identitários, conforme lembrados por Suart Hall, Michele Perrot e Mary Del Priore. A está abordagem sobre identidade de gênero é concluída com uma experiência de pesquisa numa comunidade rural da cidade de Esperança, em que as mulheres no manejo e fabrico de suas bonecas conseguem produzir seu sustento e adquirir seus espaços e lugares sociais em detrimento dos espaços antes dominados pelo masculino, o que revela que os espaços privados não são determinados, mas são construídos e transformados conforme as necessidades sociais.

Na segunda parte do livro, intitulado “As tessituras dos espaços públicos na modernidade a luz da zetética jurídica”, se procurou evidenciar uma leitura a partir da sociologia geral e jurídica e filosofia do direito para entender a constituição dos espaços públicos que nascem pela deliberação e pelas ações políticas. Para isso, foram feitos recortes e tessituras contextuais em diferentes épocas, num primeiro momento com a fase iluminista e contratualista com o advento da política e do direito moderno, que inaugura o movimento de consagração dos direitos fundamentais (direitos civis e políticos), principalmente na época das revoluções burguesas. Em seguida, nos próximos capítulos é feita uma abordagem critica sobre a importância do lugar de constituição dos espaços públicos e de consagração dos direitos políticos, com base em pensadores como Karl Marx (caráter estrutural das normas) e dos neomarxistas Antonio Gramsci (a idéia de hegemonia e ideologia na construção dos espaços políticos) e Edward Thompson (os indivíduos de baixo também constroem seus direitos). Além de contemplar a importância dos regimes democráticos em detrimento dos regimes totalitários a partir do conceito de práxis política (da condição humana de Hannah Arendt) e ação comunicativa em Jürgen Habermas, como elementos indispensáveis para entender a emancipação política dos indivíduos inseridos na sociedade capitalista. Este trabalho é concluindo com uma outra experiência de pesquisa, desta vez no município de Patos a partir da efetivação de ações publicas que nascem, por exemplo, com as políticas públicas, o foco de discussão neste ultimo capítulo é a ação do Pró-Jovem como medida de promoção do direito á educação e ao trabalho.


Para entender as tessituras da modernidade, ou seja, a organização e contextura, permeada pelo entrelaçamento de espaços privados e públicos que se metamorfoseiam, é preciso conceber este fenômeno multidimensional a partir da idéia de conhecimento reflexivo que se forma nos bastidores das ações de homens e mulheres nas
conjunturas determinadas por diferentes categorias políticas, sociais, culturais-identitárias, econômicas etc. Defende Habermas (2002, p. 121), que “a época moderna encontra-se, sobretudo, sob o signo da liberdade subjetiva”. Que se realiza, segundo ele, na sociedade como um espaço. Ao propor uma reflexão tão instigante e provocativa sobre o fenômeno da modernidade com todas as suas tessituras em aberto se abre a possibilidade de pensar sobre o destino das instituições sociais frente à transitoriedade do mundo moderno.

Aos que tiverem interesse em adquiri-lo, pode ser encontrado na livraria campinense (Facisa) e no site da editora: http://www.protexto.com.br/livro.php?livro=334

sábado, 16 de abril de 2011

Sócrates entre o destino dos homens e a busca da felicidade





Seguindo a frase inscrita no templo de Apolo em Delfos “conhece-te a ti mesmo”, o filósofo Sócrates perguntava insistentemente sobre o ser do homem. O que é ser um homem justo?
Preocupado com o destino (ético) do homem na cidade de Atenas em pleno século de Ouro (séc. V a.C - desenvolvimento da democracia, mais também da corrupção no contexto do governo de Péricles), Sócrates indaga os homens de seu tempo (e os homens e mulheres de hoje) sobre sua condição enquanto ser. Logo, para a filosofia socrática se o homem se distingue enquanto ser pela sua alma e se a alma é o eu consciente e inteligente, então a virtude (areté), ou seja, aquilo que reflete e atualiza plenamente essa consciência e inteligência não pode ser senão a ciência e o conhecimento. O video acima, ajuda-nos a entender que as responsabilidades, como, por exemplo, o exercício da atividade política (jurídica etc.) deve ser entendido como um valor supremo para os homens é, portanto, no conhecimento, que se realiza por essência aquilo que o homem deve ser, cuja essência é a alma e que se encontra na busca da sabedoria (no exercício da filosofia). Daí não entregar os destinos da cidade (de Atenas) a qualquer um, mas aos homens íntegros e desejosos de conhecimento, que não almejam o poder e a riqueza (materiais) que são efêmeros e sim a maior das riquezas que é o conhecimento.

Deste modo, evitar o maior dos males, o desconhecimento (a ignorância, como diria Platão), é a razão pela qual vivemos todos os dias procurando um sentido para a vida e para os destinos da humanidade!


"... para o homem nenhum bem supera o discorrer cada dia sobre a virtude e
outros temas de que me ouvistes praticar quando examinava a mim mesmo e
a outros, e que uma vida sem exame não é digna de um ser humano...".
(Platão, Apologia, 38 a).

"Eu estou a disposição tanto do pobre quanto do rico, sem distinção
[...] podeis reconhecer que sou bem um homem dado pelo deus à cidade por
esta reflexão: não é conforme à natureza do homem que eu tenha
negligenciado todo os meus interesses [...] para me ocupar do que diz
respeito a vós [...] para persuadir cada um a tornar-se melhor".
(Platão, Apologia, 32 b e 31 b).

sábado, 9 de abril de 2011

Se "A História é filha de seu tempo" então "um pensador é operário do seu tempo" - o caso da Teoria Jurídica de Bobbio
















Nas minhas aulas de Introdução à Ciência do Direito II e de Filosofia do Direito tenho me preocupado em constituir uma leitura critica e revisionista da Ciência Jurídica, a partir dos elementos teórico-metodológicos oferecidos pela culturologia jurídica (estudo das experiências históricas e culturais de formação do Direito) tanto é assim que nas conversas com os alunos procuro insistir na idéia de que “cada pensador é filho do seu tempo” uma analogia ao brocardo historiográfico citado por Vavy Pacheco Borges "A História é filha de seu tempo" (do livro ‘O que é História? ’ - Editora Brasiliense, 1998, 4a Edição, p. 56.), neste caso, entendemos que se "A História é filha de seu tempo" então "um pensador é operário do seu tempo"! O que me ajuda a entender e expor sobre a relação entre ser e tempo (fenomenologia heideggeriana), ou seja, de que entre o homem e a teoria há mais coisas do que manda a vã filosofia, a questão histórica é uma delas.

Numa destas aulas expus a Teoria do Ordenamento Jurídico, particularmente a partir do pensamento do jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio. Para lembramos quem foi Bobbio, este nasceu em Turim, no dia 18 de Outubro de 1909 (1909-2004), filho de uma família burguesa do norte da Itália, Norberto Bobbio praticamente viveu o século XX por inteiro, vindo a falecer na mesma cidade aos 94 anos, no dia 9 de Janeiro de 2004. Ele tornou-se, nos últimos anos, o pensador político italiano mais famoso do mundo e, bem ao contrário de Nicolau Maquiavel, seu conterrâneo que viveu no Renascimento, tornou-se um dirigente ativista dos direitos individuais e não um apologista dos poderes do Estado. Bobbio foi emérito professor de Direito e Política em Turim, um filósofo da democracia, foi um insuperável combatente a favor dos direitos humanos.

Enquanto militante e defensor dos direitos humanos, Bobbio não esqueceu de contextualizar o modelo de Estado e de sanção do seu tempo, no livro com o mesmo título da aula ministrada dias antes, fizemos questão de lembrar que a teoria bobbiana sobre ordenamento jurídico e norma jurídica já ressaltava que enquanto no século XIX as sanções (um dos elementos identificadores da norma jurídica) eram predominantemente negativas (Estado protetor e repressor, por exemplo, com o predomínio do direito penal) no século XX as sanções são positivas (Estado “facilitador” e restitutivo, por exemplo, com o predomínio dos direitos civil e do consumidor). Essa mudança de paradigma jurídico se deve ao desenvolvimento do capitalismo liberal, que segundo o sociólogo Émile Durkheim se configura no modelo (jurídico) de solidariedade social, cuja realidade econômica, política e jurídica é perpassada pelo modelo de garantias consumistas e restitutivos de direitos.

Neste caso, metodologicamente pode ser entendido por uma rede de conexões e sentidos, ou seja, o que o jurista brasileiro Miguel Reale teorizou como dialética da complementaridade. O que reforça a idéia de que os pensadores, as instituições jurídicas e as articulações políticas devem ser entendidas a luz da contextualização histórica, bem como da análise de conjuntura, que se tornam propícios para conhecer a dinâmica e os sentidos porque passam a construção do ordenamento jurídico de um lugar. Assim, uma forma de ler e entender a Ciência do Direito não apenas a partir da dogmática jurídica, mais também com base na argumentação, na processualística e nas redes de conexão entre a norma e o contexto, o que aliás tem sido mais “cobrado” em exames (OAB, Concursos e prática forense), e, um dos pontos fracos dos concurseiros e recém formados, e que têm sido explorado nos exames hodiernamente.

O que nos leva a crer, que o caráter interdisciplinar, a visão holística e a sensibilidade metodológica que nasce do diálogo entre as diferentes áreas das humanidades só aguça a possibilidade de entendermos as entrelinhas por trás dos bastidores do Direito, ou como já teria afirmado a literária Clarice Lispector "já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas".

domingo, 13 de março de 2011

Pequena homenagem a Cartola




Angenor de Oliveira, mais conhecido como Cartola, (Rio de Janeiro, 11 de outubro de 1908 — Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1980) foi um cantor, compositor e violonista brasileiro. Cartola é um dos ícones da música popular brasileira que foi resgatado na ultima sexta pela Tv Globo no programa "Por toda minha vida" (raridade encontrada na programação televisiva), e traz nas suas letras uma musicalidade rara e introspectiva, que remete um pouco aos traços da cultura do povo brasileiro, revestido pelo colorido das culturas e identidades nacionais, como afirmou o antropólogo Darci Ribeiro.

A música "O sol nascerá" de autoria de Cartola e Elton Medeiros, lançado em 1974, é uma excelente oportunidade para conhecer os traços líricos do poeta e do enredo de um carioca que venceu as adversidades pela poética (em grego antigo:Περὶ ποιητικῆς; em latim: poiêtikês), pois dessas artes literárias correm as veias abertas para uma linguagem intimista e critica sobre a realidade, como diria o filósofo Aristotéles.

"A sorrir Eu pretendo levar a vida Pois chorando Eu vi a mocidade Perdida
Fim da tempestade O sol nascerá Finda esta saudade Hei de ter outro alguém para amar
A sorrir Eu pretendo levar a vida Pois chorando Eu vi a mocidade Perdida"
(O sol nascerá - 1974)

segunda-feira, 7 de março de 2011

O olho mitológico do cíclope e o show de bundas na tevê!

















Ao ligar a tevê nestes dias carnavalescos até parece que estamos diante de um "leilão de bundas" ao vivo, cada qual oferecendo sua "fruta" como se mercadoria fosse. Nada mais provocador que o "Dia Internacional da Mulher" (08 de março de 2011) cair na terça-feira de (dia de) carnaval!

Nestes tempos está em evidência a síndrome da "mulher fruta" do "gênero humano" hibrido, seja homem ou mulher metamorfoseado, como diria Stuart Hall pensando as identidades na pós-modernidade, objeto desejado, mas também vilipendiado pelos discursos sobre as conquistas femininas de "mulheres frutas" que vieram da periferia (ou favelas, postas à margem [melhor dizendo, marginalizadas pelos próprios programas televisivos - programas policiais e pelo sensacionalismo de Gugu, Faustão, Luciano Huck entre outros] pela mídia que as "salvou" da miséria) e conquistaram um pseudo-espaço neste reality television.

Até brigas aparecem nas imagens da tevê (tem outra coisa para assistir?), melhor dizer, barracos em horário nobre envolvendo as frutas vítimas do sistema de consumo, tendo como testemunhas os telespectadores (desde famílias e suas crianças até a platéia juvenil sedenta por diversão), vendo nas cenas um entretenimento livre. Até parece que as "frutas" conquistaram sua auto-estima na mídia como detentoras de nádegas voluptuosas (ou outras partes avantajadas) que refletem uma percepção social de que quanto maior a bunda, maior a sensualidade, ou ainda, um pretenso prazer "incomparável" provocado pelas partes.

Frente a banalização dos sentidos carnavalescos conforme já dissemos noutro comentário acerca do riso e da ironia, em louvor do espetáculo "sem brilho" do carnaval made in televisão brasileira (esvaziando os sentidos, resumidos pejorativamete e de maneira apelativa à nudez feminina), lembrei de uma discussão semiótica do pensador mexicano Octávio Paz no seu livro "Conjunções e Disjunções" lançado pela editora Perspectiva em 1979, para constituir uma leitura acerca das metáforas populares na contemporaneidade.

Neste contexto indicado por Octávio Paz em seu livro, há uma realidade escondida nas estórias e nas figuras latinas (hispano-americanos), que nasceu da realidade histórica deste Continente e se espreita nos "corpos selvagens" destes povos, afirma ele: "o que digo deve ser entendido literalmente: estou falando da realidade que está abaixo da cintura e que a roupa encobre. Refiro-me a nossa cara animal, sexual: a bunda e os órgãos genitais. Não exagero nem invento, a metáfora é tão antiga como a dos olhos "espelhos da alma". Há uma gravura de Posada que representa um fenômeno de circo: uma criatura anã vista de costas mas com o rosto voltado para o espectador e que mostra embaixo, no lugar das nádegas, outro rosto". Acrescenta ele, "é uma longa comparação entre bunda e rosto. A superioridade da primeira consiste em ter um olho só, como os cíclopes que descendiam dos deuses da visão" (PAZ, 1979, p.10-11).

Será que neste jogo semiótico e metafórico as "mulheres frutas e as fankeiras" descobriram a virtude da (pré)visão, do olho mitológico do cíclope que se esconde na semana e aparece nas noitadas do fank e nos tempos de carnaval? Acho que por isso, as ninjas do fank e as demais personagens escondem o rosto para revelar a outra cara!

Na mitologia grega da obra Odisséia, inserida por Paz (1997) este lembra da cara dos cíclopes, para afirmar que passamos do mundo humano ao mitológico, pois se a cara é bestial como a bunda, a bestialidade de ambas é divina e demoníaca, logo é o cíclope Polifero (filho de Poseídon e da ninfa Teosa, que combate com Ulisses na estória deste herói rumo a Ítaca), no momento que o cíclope contempla a água e descobre seu rosto:


"Miréme y lucir vi un sol en mi frente
cuando en el cielo un ojo se veía:
neutra el agua dudaba a cual fe preste:
o al cielo humano o al cíclope celeste" (PAZ, 1979, p. 11).

ou, traduzindo:

"Olhei-me e vi um sol luzir em minha frente
quando no céu um olho se via:
neutra a água hesitava em qual dar crédito:
se ao céu humano, se ao cíclope celeste".


Concluo este protesto (amoral ou moralizante) lembrando que o sentido da metafóra do rosto para lembrar a outra cara (bunda) e a "perversão dos corpos" é uma forma interpretativa de ler a realidade quanto a submissão da mulher (suposta mercadoria vendida como fruta, e pior a preço de banana). Se ocorrem transformações "o olho do cú: o do cíclope: o do céu. [...]" (PAZ, p. 11), é porque o enfoque fenomelógico estabeleceu uma leitura (des)moralizante sobre o que ocorre frequentemente com a imagem da mulher - sagrada em todos os seus sentidos - mas transformada em motivo de obsessão sexual e/ou riso com as imagens das "mulheres frutas", por exemplo, mesmo que representem em sua essência os sentidos da vida e a metáfora do prazer.
Como alerta Paz (1979, p. 14), "a cara ri da bunda e assim traça de novo a linha divisória entre o corpo e o espírito".

sábado, 5 de março de 2011

O CARNAVAL BANALIZOU SEUS VALORES OU FRAGMENTOU SEUS SENTIDOS NA NOITE DOS TEMPOS?
























Depois de tanto tempo de celebração profana do “mundo de ponta cabeça” é chegado o momento de rememorar o sentido que acabou se perdendo ao longo do tempo, desta festa tão quente que pegou ainda mais fogo quando chegou ao calor dos trópicos, invertendo os papéis. Afinal, celebrar carnavalis no Brasil tudo pode (festa da carne ou de adeus à carne desde os tempos medievais, daí a Igreja ter convencionado o tempo da quaresma para "purgar os pecados da carne"), inclusive profanando, amoralizando e banalizando, “pois não existe pecado do lado de baixo da linha do Equador!”.

Para pensar sobre as origens históricas da festa carnavalesca extraímos alguns fragmentos interpretativos sob a perspectiva da historiografia cultural (a partir da teoria histórica da terceira geração dos Annales), que na verdade acabou traduzindo aquela festa profana como sendo de dois sentidos ou que tenha uma dualidade na percepção do mundo e da vida humana.

Mikhail Bakhtin em seu livro ‘A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento’ afirmou que “Os festejos de carnaval com todos os atos e ritos cômicos que a ele se ligaram, ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval. [...] O riso acompanhava também as cerimônias e os ritos da vida cotidiana: assim, os “bufões” e os “bobos” assistiam sempre às funções do cerimonial sério, parodiando os seus atos (proclamação dos nomes dos vencedores dos torneios, cerimônia de entrega do direito de vassalagem, iniciação dos novos cavaleiros, etc.). Nenhuma festa se realizava sem a intervenção dos elementos de uma organização cômica, como por exemplo, a eleição de rainhas e reis “para rir” para o período da festividade. Todos esses ritos e espetáculos apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado Feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferentes, deliberadamente não oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem levá-las em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da Idade Média, nem a civilização renascentista. Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma também o quadro evolutivo histórico da cultura européia nos séculos seguintes. [...] A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos primitivos encontrava-se paralelamente aos cultos sérios (por sua organização e seu tom) a existência de cultos cômicos, que convergiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia (Riso Ritual); paralelamente aos mitos sérios, mitos cômicos e injuriosos, paralelamente aos heróis, seus sósias paróticos”.

Já para Peter Burke no livro ‘Cultura Popular na Idade Moderna’ acrescenta: “era uma representação do mundo virada de cabeça para baixo. O que é claro é que o carnaval era poliscênico, significando coisas diferentes para diferentes pessoas. Os sentidos cristãos foram sobrepostos ao pagãos, [...]. Os rituais transmitem simultaneamente mensagens sobre comida e sexo, religião e política. A bexiga de um bobo, por exemplo tem significados diversos, por ser uma bexiga associada aos órgãos sexuais, por vir de um porco, o animal do carnaval por excelência e por ter sido trazida por um bobo, cuja ‘fertilidade’ é simbolizado por ser vazia.”

Para Burke o carnaval popular da Idade Moderna na Europa era o momento da “inversão social”, uma festa inteligente em que os pobres poderiam vingar-se dos ricos, fantasiados poderia jogar ovos podres e espancar os nobres, xingar os políticos sem medo das conseqüências, na verdade, depois de um ano todo de subjugação da sociedade verticalizada e impositiva, era naquele momento "festivo e medonho" que as estruturas sociais se invertiam, se metamorfoseavam. Um mundo de ponta cabeça, dual, que acima de tudo revelava um momento ‘sagrado-profano’ para banalizar a vida pública em detrimento dos costumes e interesses privados.

Depois de tanto tempo, vendo os sentidos cômico, satírico e irônico das festas carnavalescas se perderem entre as vielas da contemporaneidade, cujo carnaval agora é bem mais mercadológico (dos blocos e camarotes elitizados) do que a valoração de sentidos históricos perdidos nas noites dos tempos, abrem-se alás para as micaretas e suas transmissões made in Salvador e para as escolas de samba "empresa" do Rio de Janeiro.

Depois de tudo isso, perguntamos ao povo, afinal onde ficou o Carnaval? Até o riso com toda sua carga semiótica dos tempos medievais e modernos não ganha tanto sentido simbólico quando pensando a luz da conjuntura atual. Quando vejo Humberto Eco no seu livro (e depois filme) "O Nome da Rosa" satirizando com seu estilo irônico e mordaz a escolástica feudal a partir do "riso" (é proibido rir no mosteiro, motivo para os assassinatos), percebo o quão feroz tem sido (no sentido de esvaziamento de sentidos) as festas atuais, ou seja, até parece que banalizamos os sentidos carnavalescos (do riso e da ironia, principalmente) em louvor do espetáculo "sem brilho" do carnaval made in televisão brasileira (esvaziando os sentidos, resumidos pejorativamente e de maneira apelativa à nudez feminina).