terça-feira, 22 de setembro de 2015

O Papa Francisco e Hill pelo “mundo de ponta cabeça”







A décima viagem diplomática e missionária do Papa Francisco inscreve na História contemporânea uma página marcante nestes dias de profunda desumanização dos povos, tempos de crise financeira, violência urbana (da Síria via extremistas do Estado Islâmico até os excluídos que promovem arrastões na zona sul carioca), corrupção, xenofobia contra migrantes clandestinos e (re) definição geopolítica diante do novo paradigma da “era das catástrofes” para o século XXI, aludindo à metáfora do historiador Eric Hobsbawm. 

A nova missão do Santo Padre, mensageiro franciscano, é digna de aplausos até dos mais agnósticos e obcecados ideólogos da direita, da esquerda ou do centro, ela inquieta e incomoda, pelo poder sem pleonasmos de sua anunciação. Personifica profeticamente as palavras apostólicas de São Tiago:  

“Onde houver ciúme e contenda, ali há também perturbação e toda espécie de vícios. A sabedoria, porém, que vem de cima, é primeiramente pura, depois pacífica, condescendente, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, nem fingimento. O fruto da justiça semeia-se na paz para aqueles que praticam a paz” (Tg 3,16-4). 

Sua missão tem sido insistentemente marcada pelos sinais de Paz. 

Contam os anais jornalísticos que em 1973, em plena Guerra Fria, o então presidente de Cuba, o socialista Fidel Castro foi perguntado pelo jornalista de uma agência de notícias britânica, Brian Davis, se ele acreditava que seriam restabelecidas as relações internacionais entre Cuba e Estados Unidos em um futuro próximo, já que se tratava de países tão distantes ideológica e politicamente, mas bem próximos geograficamente. E a resposta de Fidel foi enfática “Os Estados Unidos só voltarão a dialogar conosco quando tiverem um presidente negro e quando houver no mundo um Papa latino-americano.  

Quarenta anos depois, a profecia de Fidel se concretiza num contexto favorável, sobretudo para marcar o processo "pós-moderno" no qual o mundo se encontra atualmente, fortemente perpassado por uma luta desenfreada pela desterritorialização, sacralização do mercado e redefinição de fronteiras nacionais, ideológicas, religiosas etc., principalmente porque na atual conjuntura somam-se 65 muros fronteiriços pelo mundo, quando na época da Guerra Fria, tempos da geopolítica “capitalista-socialista” do muro de Berlim, tínhamos 16 muros espalhados pelo mundo. Hoje os muros são muito mais invisíveis, eles são definidos pelo poder e violência simbólica.  

Fazendo alusão da clássica obra do historiador inglês Christopher Hill sobre a missão do Papa Francisco em Cuba e Estados Unidos, ele escreveu “O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640” de tradição neomarxista. Hill não reproduziu uma análise sobre a revolução burguesa do séc. XVI a partir dos discursos da estrutura oficial, baseada na medicina, direito ou teologia, nem tão pouco pela contenda economicista na História. Preocupou-se em historiar a luta pela liberdade sob o ponto de vista da multidão, a partir das experiências do povo. Nesta perspectiva da historiografia social inglesa, o povo representa um elemento determinante para entender as nuances da historicidade, sobretudo como peça fundamental para construção de um movimento revolucionário, cujo bojo encontra-se no processo produtivo de acumulação de capital e nas transformações estruturais. Sua abordagem revisa as mudanças históricas, que possibilitam o nascimento de uma segunda via de contra cultura popular e comunal.  

Hoje, Hill é lembrado pela metáfora da inversão social “o mundo de ponta cabeça” ou naquilo que o Papa Francisco resgata da divida histórica dos tempos da “Guerra Fria” exaltando uma reflexão profunda em torno da ”Paz”. 

Não precisamos de muitas teorias sociais para entender a dinâmica do processo atual, quando é encontrada nas palavras do Sumo Pontífice sua incisiva luta diplomática nos moldes kantianos e da sabedoria cristã, muito distante dos estratagemas da época da cortina de ferro. 

Palavras como: 

“Os cristãos cubanos devem ‘servir’ aos mais frágeis na sociedade e ‘não servir-se’”.

“Há um 'serviço' que serve, mas devemos ter cuidado com o outro serviço, a tentação do 'serviço' que 'se' serve”.

Sobre o povo cubano “um povo que tem gosto pela festa, pela amizade, pelas coisas belas [...] É um povo que têm feridas, como todo povo, mas que sabe estar com os braços abertos, que marcha com esperança, porque sua vocação é de grandeza”. 

Afirmações proferidas no último domingo, dia 20 de setembro, quando o Papa Francisco defendeu a rejeição de qualquer “ideologia” no serviço às pessoas, diante de uma multidão presente na Praça da Revolução em Havana, marcam sua postura evangélica e diplomática. Nos seus vinte seis discursos programados o tom será marcado por mensagens que buscam resgatar a dignidade humana, tolerância, alteridade e mobilização popular. Seguramente ao discursar nesta semana na Organização das Nações Unidas – ONU sua Encíclica Laudato Si será lembrada, já que com ela se irrompe as fronteiras do parlamento mundial para lembrar da “casa comum” e a ecologia integral como elementos determinantes para reconfigurar o “mundo de ponta cabeça”.  Só assim Fidel e Obama devem pensar seriamente em substituir 'endurecer' por 'amolecer' o coração: "Hay que amolecer, pero sin perder la ternura jamás".








sábado, 19 de setembro de 2015

Lévinas, o espelho que revela o Outro em mim


Comumente estamos preocupados com o tempo, principalmente nas atividades diuturnas que exigem dedicação e cuidado com a vida familiar, trabalho, lazer, descanso e até a vida afetiva. Porém, a humanidade nos últimos séculos, pouco sentido deu a importância que a atividade ocupacional possui para melhoria da qualidade de vida e para afirmação da solidariedade como valor ético. Geralmente influenciados pela sociedade de mercado, preocupamo-nos em saber quantos anos levam para nossa vida ter progresso financeiro, se nossos filhos serão, um dia, realmente aquilo que nós desejamos que sejam, se teremos uma velhice tranquila com estabilidade financeira.  
Com efeito, estes questionamentos não passam de mera efemeridade, pois, em boa parte das ocasiões, o que preocupa as pessoas tem sido a transitoriedade do tempo corrido e de quanto se leva para possuir bens materiais ou conquistas pessoais, negligenciamos em grande medida as mudanças que nos proporcionam o bem viver com os outros. Porém, compreendê-las, dando importância a compreensão do sentido existencial neste mundo "comum" torna-se urgente. 
Sobre este aspecto, nos chama a atenção o filósofo Emmanuel Lévinas (1906-1996), defensor da questão da categoria da alteridade, que segundo ele, é a forma para experimentar a ética intimamente associada ao agir, como sendo um valor que não propõe uma epistemologia do transcendente (teoria do conhecimento sobre Deus), mas defende uma redescoberta dos valores cujo elemento central passa a ser a questão ética (respeito de si mesmo a partir da acolhida e respeito ao Outro). Sua teoria do conhecimento não tem como ênfase um discurso teológico sobre Deus ou Infinito, mas da compreensão da ação do Infinito divino na criação, isto é, o ser (ontológico) não é o elemento preponderante para o conhecimento, mas sim a grandeza ética do Ser Infinito que se expressa nas relações de convivência entre os homens. Neste aspecto, a cultura judaico-cristã nos ajuda a compreender que a harmonização da vida, consequentemente a salvação (escatologia) nascem das experiências terrenas com os outros. 
Sua filosofia está presente na concepção do discurso sobre Deus que se manifesta na ética da alteridade, destaca o pensamento de Lévinas que a melhor forma de agir conforme a ética é manifestar a importância real da relação do homem com o outro (seu semelhante). Neste aspecto, Lévinas ressalta a importância da figura do eu, que possui identidade como conteúdo, assim seu existir consiste em identificar-se no mundo, conceituando sua trajetória a partir do seu coexistir com os demais indivíduos. 
A filosofia da alteridade baseada no filósofo franco-lituano parte da subjetividade, propõe que sua categorização esteja intimamente associada a dimensão política. Essa construção de base política é representada pelo lugar de convivência com o Outro, reconhecendo neste alguém, alguns meios para compartilhar conhecimentos, experiências, inquietações e mobilizações em relação a vida em comum. Já afirmou o filósofo Aristóteles na Antiguidade Clássica, que o homem é um ser político, sendo os homens capazes de tornarem-se justos, por meio do exercício da virtude e da justiça. 
Para a filosofia da alteridade, o outro é o início do filosofar e o princípio do exercício da ética, fundamentado pela razão, além do sentido do existir humano e a possibilidade de concretização da justiça e da paz. Nestes termos, aquilo que conduz ao conhecimento é o agir com justiça, no qual ética e filosofia estão intimamente relacionados como peças fundamentais para efetivação do conhecimento humano. 
Lévinas propõe metaforicamente que conhecer-se é um exercício que pressupõe o Outro, uma atividade de realização imanente, que envolve a subjetividade e a exterioridade do sujeito. Segundo ele, o Outro se revela na metáfora do rosto, que se revela para mim. O rosto não se reduz a plasticidade (física) de alguém, se concretiza em toda figura do Outro, imagina não apenas uma face humana representada na figuração do conjunto de uma entidade humana, que vai além de um rosto, representa um rosto como alteridade do Outro, uma transcendência que é expressão infinita. Ao falar do rosto de Outro, se fala a partir de um eu. Daí, portanto, o Outro que se revela sou eu mesmo diante do espelho.
E qual de nós, ousaria não se olhar diante do espelho? 


 Trecho do livro: EUFRASIO, Marcelo Alves P. Descobrindo o belo onde o sol brilha para todos: educação em Direitos Humanos.  Curitiba: Contexto, 2016.  

sábado, 15 de agosto de 2015

Ainda há esperanças para juventude



Têm sido difundido pelo aparelho midiático e nas relações sociais (novelas, músicas, esportes, partidos políticos etc.) que o lugar da juventude é marcado pela aventura, transgressão, rebeldia, sonhos e paixões. Já faz algumas décadas que as novelas televisivas insistem neste protótipo metamorfoseado. Desde a Antiguidade, os jovens do sexo masculino se colocavam como protagonistas nestes papéis sociais “juvenis” de rituais de passagem, conforme ocorria na sociedade romana sob a égide do pater familiae. E assim, nossas instituições mais tradicionais passaram a conviver com os gritos de guerra, as gírias, as roupas transadas, estilos alternativos das tribais juvenis, tornando-os como que sociedades secretas. 
No Brasil, a segunda metade do séc. XX é marcado pelos movimentos juvenis e pelas reivindicações populares pela democracia, mas o discurso da vulnerabilidade juvenil foi gradativamente afirmado a partir da inexperiência e imaturidade, que ainda hoje por vezes é confundido exclusivamente com hipossuficiência. Ainda que muitos grupos ou personagens juvenis deem provas de suas iniciativas e desbravamentos honrosos, nossa sociedade reforça a imagem da insegurança, como sendo o jovem promotor da violência (agente passivo ou ativo), ou melhor, laboratório para as estatísticas de vitimização da violência urbana, ou sendo ele, desprovido de oportunidade para assumir uma jornada laboral, quando em diferentes situações é cobrada a experiência profissional.

Na teoria sociológica de Pierre Bourdieu (1930-2002), é possível encontrar uma analise estrutural sobre a questão da juventude. Ao ponto que perguntaram ao sociólogo francês:

“Como o sociólogo aborda o problema dos jovens? - O reflexo profissional do sociólogo é lembrar que as divisões entre as idades são arbitrárias. É o paradoxo de Pareto dizendo que não se sabe em que idade começa a velhice, como não se sabe onde começa a riqueza. De fato, a fronteira entre a juventude e a velhice é um objeto de disputas em todas as sociedades(BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. p. 112).

Em 2013 tive oportunidade de fazer uma modesta análise na Revista Sociologia sobre a juventude no Brasil a partir da teoria de Bourdieu, naquela oportunidade destaquei os importantes acontecimentos, transformações e conquistas (Secretaria nacional da Juventude, Estatuto da Juventude, Campanha da Fraternidade, Jornada Mundial da Juventude etc.) na juventude brasileira, mostrando que o maior desafio que se avizinha continua sendo de conquistar espaços sociais autênticos, sem que, se percam os referenciais de dignidade humana. Afinal, se gradativamente foram sendo esquecidos de solidificar os instrumentos que poderiam orientá-los em caminhos saudáveis para o corpo e a alma, a chama do espírito juvenil não pode apagar-se. Ou, como afirmou certa vez Dom Hélder Câmara: “O segredo para ser e permanecer sempre jovem, mesmo quando o peso dos anos castiga o corpo, o segredo da eterna juventude da alma, é ter uma causa a dedicar a vida” (Devocionário para Juventude. São Paulo: Loyola, 2004).



Segue abaixo um trecho do texto da revista






terça-feira, 21 de julho de 2015

La faim consume la terre!







Para pensar sobre a sistematização do mundo “dualista” (subdesenvolvido X desenvolvido) conforme já estudou a teoria da marginalidade do sociólogo Francisco de Oliveira, fiz este modesto verso no passado (aqui tem alguns trechos), para suscitar a reflexão sobre a questão da luta pela sobrevivência das camadas sociais mais carentes e marginalizadas, numa sociedade que insiste na individualização dos recursos materiais e naturais em detrimento da humanização da vida.


A fome consome a terra


Terra sem dono
Povo no pano
Gente de fome
Sistema consome
Dono em luta
Atrás da disputa
Com forte, mordaz
Sem sorte, voraz
É o povo na terra
Que vive na serra
Na busca do chão
Pra fugir do sertão
Pois a fome consome
Este povo sem nome (...)

Protege o filho na queda
A mãe fugindo da pedra

Ela sabe viver
No viver e no sofrer
Na morte e na vida
Na vida partida
As cercas massacram
Os nobres arrasam
Este povo de fome
Que a terra consome.