domingo, 15 de novembro de 2020

Erguer a mão ao pobre!


 No dia alusivo ao IV Dia Mundial dos Pobres, celebrativo convencionado pelo papa Francisco para promoção da reflexão acerca dos dramas materiais e existenciais da pobreza humana, a reflexão se torna urgente, uma vez que somos convidados a viver uma profunda pobreza evangélica.

Na fronteira da simples relação de oposição entre riqueza e pobreza, existe uma riqueza-pobre e uma pobreza-rica. Essa nuance é possível de se enxergar, desde que se vença o manto da cegueira e do anestesiamento coletivos, e, portanto, ao adoecimento dos sujeitos, ao vazio existencial, à crise financista e ao pânico social. 

A nova idolatria moderna vê o ser apenas ali onde está o ter, por isso, promove como referências, a reluzência das espetacularizações midiáticas, a desinformação da informação oca das redes sociais, o poder sem relação com a legitimidade, à moeda sem relação com a produção. 

Hodiernamente, a pobreza se massifica e se institucionaliza pela omissão nos projetos governamentais. Até 2021, segundo o Banco Mundial (2020), 150 milhões de pessoas podem mergulhar na pobreza extrema. 82% dos novos pobres vivem no Brasil, ou seja, vivem com menos de 12 reais por dia. 

O papa Francisco em sua mensagem para este dia, ressalta a importância do gesto simbólico, materializado na esteira de um profundo gesto que nos leva da imanência à transcendência “Estende tua mão ao pobre” (Eclo 7,32), quando nos lembra em tempos de pandemia das ricas expressões da caridade. 

A pobreza que decorre das imensas e abissais desigualdades sociais que persistem no Brasil contemporâneo é território de uma classe social deslocada do universo das sociabilidades, que torna o pobre um pária da sociedade em meio a cultura da indiferença. 

O sentimento que ecoa da sociedade é de “Aporofobia”, do grego άπορος (á-poros), indigente, pobre, isto é, φόβος (fobos), medo; rejeição, hostilidade e aversão às pessoas pobres e à pobreza. 

O pobre é destituído da cidadania reificada de nossos tempos. Isso diz pouco sobre como o pobre é, mas diz muito sobre as patologias da sociedade contemporânea que precisam ser exorcizadas, a partir do sublime gesto de "estender a mão". 

(Na foto, oléo sobre tela "Retirantes" de Candido Portinari, pintado em Petropólis-RJ, 1944)

domingo, 12 de abril de 2020

A ressurreição e o milagre da vida


Cada vida que nasce é sinal indelével do amor e da criação divina, desde uma insípida bactéria que completa e harmoniza todo ecossistema até a diversidade manifestada na natureza, que se projeta para expressar a equidade, que nasce, brota e dá sentidos à existência. Cada teofania no mundo projeta uma lição que por vezes a humanidade não está preparada para acolher em sua sutileza e suas lições.
As manifestações divinas também se apresentam na dor das ausências. Por vezes as dores do mundo descortinam as fragilidades estaladas no coração humano, seja uma partida, uma doença ou uma dor profunda (física ou existencial), são nos momentos de perda, que nos damos conta das limitações e do vazio. Afinal, a vida precisa de um  sentido.
As perdas costumam nos levar ao encontro de quem realmente nós somos, por exemplo, com a pandemia do novo coronavírus (covid-19) ocorreu o “desmonte das seguranças” a partir das ausências, apareceu a melancolia dos que sentem a ausência da vida social ou daqueles que estão famintos, e que gritam por socorro em meio à tristeza pela ausência da solidariedade social. É um movimento de descontinuidade, que exacerba as exigências do que devemos ser.
Na antiguidade os gregos assimilavam este processo como sendo a “kínesis”, isto é, movimento. Significando não apenas mudança de lugar ou a locomoção, mas toda e qualquer alteração ou mudança qualitativa ou quantitativa de um ser, desde o nascimento até o seu desaparecimento.
As crises costumam nos convidar às mudanças.
Neste domingo da Páscoa, é oportuna a leitura do evangelista Mateus (28, 1-10), este apresenta a narrativa da ressurreição de Cristo, nos oferece a pedagogia pascal. É o evangelista que escreve para comunidade judaica na Judeia, enfatiza a necessidade da presença das testemunhas da ressurreição, tem pressa pelo anúncio. Algumas palavras transmitidoras do mistério da ressurreição são exortadas: "Não tenhas medo!" e "Alegrai-vos!" (Mt 28, 5.9). 
Não ter medo, alegrar-se. Essa mensagem pretende sublevar a comunidade apostólica ali representada por “Maria Madalena e a outra Maria” para que pudesse mergulhar no mistério pascal, uma vez que ainda se encontravam na madrugada triste em meio a dor da perda do Senhor sentenciado à crucificação. 
A comunidade das apóstolas, mensageiras da Boa Nova aos apóstolos, ainda estava apegada às dores da perda, mas é chegado o momento que deve produzir o sentimento de quem está de passagem (atitudes de movimento e mudança) do que era para o que deverá ser, ruptura e descontinuidade, coragem de estar em movimento e mudança. A doce alegria pela descoberta de quem estava morto e agora vive para sempre, e pelo anúncio da Boa Nova à comunidade.
A Boa Nova da ressurreição deve sempre produzir as mudanças necessárias, para que produzam as marcas e os movimentos geradores de vida e dos frutos do amor entre as pessoas. 
Lembro-me aqui de alguns anos atrás ter vivido uma experiência de descoberta de quem espera e luta pelo milagre da vida (passo a narrá-la). De quem deseja ensinar, mas que de fato está em busca de movimento abrindo o coração para acolher (e aprender).  
Tratava-se de uma pequena semente que brotou no nosso jardim, fruto do trabalho de jardinagem da minha filha pequena, ela persistia regando frequentemente em meio aos dias ensolarados, desde que plantamos juntos fazia alguns meses. Pela doce descoberta de quem na tenra idade nunca tinha plantado, de repente ela descobre um carinho especial num Domingo (Pascal), eis que a plantinha com suas pequenas folhas intensamente verdes recebeu do sol o brilho intenso para agraciar-nos com sua beleza, nos presenteando com sua flor intensamente amarela. Justamente para surpresa de quem adquire a semente sem saber a cor que serão as flores, o amarelo que significa luz, calor, otimismo e alegria, ao mesmo tempo, simboliza o sol, a prosperidade e a felicidade. 
Para quem estava em movimento, cuidando e persistindo, nunca desistindo de cada dia, pois ali aparece o mistério da vida. A ruptura que transcende e que gera o novo, uma duvida (ou medo) que se transforma em certeza e alegria. Uma teofania se apresentou. 
Nada mais esplendoroso como dádiva divina do que a vida, simbolizada no desabrochar do botão de uma flor.
A flor manifesta a graciosidade e beleza da vida que nasce e se transforma numa planta sem igual. Às vezes o sol a calcinava, em outras a afagava. Nestes tempos raramente a chuva a castigava ou frequentemente aquela menininha no oficio de jardineira continua realizando o trabalho de regá-la na esperança pelo desabrochamento, cuidando, cativando e sublevando suas raízes na espera por sua espontânea beleza. Não raro à noite a envolve mansamente. Nunca a ouvi queixar-se por causa do calor ou do frio. Jamais cobra alguma coisa por sua majestática beleza. Nem o agradecimento. Ela se dá simplesmente. Gratuitamente. Não é menos majestosa quando o sol a acaricia de que quando o vento a açoita. Não cuida se a olha. Nem se incomoda se a galga. Ela é como Deus: tudo suporta; tudo sofre; tudo acolhe. Deus se comporta como ela. Por isso a plantinha com sua flor (amarela) é um sacramento de Deus: revela, recorda, aponta, reenvia.
Numa madrugada, sinal da duvida (do medo e da tristeza) surge a esperança (como, por exemplo, de Maria Madalena que se desinstala para ir ao sepulcro, ou ainda, de quem persiste esperando o primeiro botão de rosa ou de quem na vida não desiste da luta) pelo novo dia que estava prestes a se revelar com seu esplendor, assim a vida floresceu. É preciso que a Páscoa do Ressuscitado projete em nós a alegria pelo movimento mesmo diante das dores do mundo, pois quem vive o mistério pascal experiencia este "novo dia" frequentemente com os sinais da vitória da vida sobre a morte e revela que pela fé se desfazem as duvidas.