sábado, 5 de março de 2011

O CARNAVAL BANALIZOU SEUS VALORES OU FRAGMENTOU SEUS SENTIDOS NA NOITE DOS TEMPOS?
























Depois de tanto tempo de celebração profana do “mundo de ponta cabeça” é chegado o momento de rememorar o sentido que acabou se perdendo ao longo do tempo, desta festa tão quente que pegou ainda mais fogo quando chegou ao calor dos trópicos, invertendo os papéis. Afinal, celebrar carnavalis no Brasil tudo pode (festa da carne ou de adeus à carne desde os tempos medievais, daí a Igreja ter convencionado o tempo da quaresma para "purgar os pecados da carne"), inclusive profanando, amoralizando e banalizando, “pois não existe pecado do lado de baixo da linha do Equador!”.

Para pensar sobre as origens históricas da festa carnavalesca extraímos alguns fragmentos interpretativos sob a perspectiva da historiografia cultural (a partir da teoria histórica da terceira geração dos Annales), que na verdade acabou traduzindo aquela festa profana como sendo de dois sentidos ou que tenha uma dualidade na percepção do mundo e da vida humana.

Mikhail Bakhtin em seu livro ‘A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento’ afirmou que “Os festejos de carnaval com todos os atos e ritos cômicos que a ele se ligaram, ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval. [...] O riso acompanhava também as cerimônias e os ritos da vida cotidiana: assim, os “bufões” e os “bobos” assistiam sempre às funções do cerimonial sério, parodiando os seus atos (proclamação dos nomes dos vencedores dos torneios, cerimônia de entrega do direito de vassalagem, iniciação dos novos cavaleiros, etc.). Nenhuma festa se realizava sem a intervenção dos elementos de uma organização cômica, como por exemplo, a eleição de rainhas e reis “para rir” para o período da festividade. Todos esses ritos e espetáculos apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado Feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferentes, deliberadamente não oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo e cremos que, sem levá-las em consideração, não se poderia compreender nem a consciência cultural da Idade Média, nem a civilização renascentista. Ignorar ou subestimar o riso popular na Idade Média deforma também o quadro evolutivo histórico da cultura européia nos séculos seguintes. [...] A dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia no estágio anterior da civilização primitiva. No folclore dos povos primitivos encontrava-se paralelamente aos cultos sérios (por sua organização e seu tom) a existência de cultos cômicos, que convergiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia (Riso Ritual); paralelamente aos mitos sérios, mitos cômicos e injuriosos, paralelamente aos heróis, seus sósias paróticos”.

Já para Peter Burke no livro ‘Cultura Popular na Idade Moderna’ acrescenta: “era uma representação do mundo virada de cabeça para baixo. O que é claro é que o carnaval era poliscênico, significando coisas diferentes para diferentes pessoas. Os sentidos cristãos foram sobrepostos ao pagãos, [...]. Os rituais transmitem simultaneamente mensagens sobre comida e sexo, religião e política. A bexiga de um bobo, por exemplo tem significados diversos, por ser uma bexiga associada aos órgãos sexuais, por vir de um porco, o animal do carnaval por excelência e por ter sido trazida por um bobo, cuja ‘fertilidade’ é simbolizado por ser vazia.”

Para Burke o carnaval popular da Idade Moderna na Europa era o momento da “inversão social”, uma festa inteligente em que os pobres poderiam vingar-se dos ricos, fantasiados poderia jogar ovos podres e espancar os nobres, xingar os políticos sem medo das conseqüências, na verdade, depois de um ano todo de subjugação da sociedade verticalizada e impositiva, era naquele momento "festivo e medonho" que as estruturas sociais se invertiam, se metamorfoseavam. Um mundo de ponta cabeça, dual, que acima de tudo revelava um momento ‘sagrado-profano’ para banalizar a vida pública em detrimento dos costumes e interesses privados.

Depois de tanto tempo, vendo os sentidos cômico, satírico e irônico das festas carnavalescas se perderem entre as vielas da contemporaneidade, cujo carnaval agora é bem mais mercadológico (dos blocos e camarotes elitizados) do que a valoração de sentidos históricos perdidos nas noites dos tempos, abrem-se alás para as micaretas e suas transmissões made in Salvador e para as escolas de samba "empresa" do Rio de Janeiro.

Depois de tudo isso, perguntamos ao povo, afinal onde ficou o Carnaval? Até o riso com toda sua carga semiótica dos tempos medievais e modernos não ganha tanto sentido simbólico quando pensando a luz da conjuntura atual. Quando vejo Humberto Eco no seu livro (e depois filme) "O Nome da Rosa" satirizando com seu estilo irônico e mordaz a escolástica feudal a partir do "riso" (é proibido rir no mosteiro, motivo para os assassinatos), percebo o quão feroz tem sido (no sentido de esvaziamento de sentidos) as festas atuais, ou seja, até parece que banalizamos os sentidos carnavalescos (do riso e da ironia, principalmente) em louvor do espetáculo "sem brilho" do carnaval made in televisão brasileira (esvaziando os sentidos, resumidos pejorativamente e de maneira apelativa à nudez feminina).

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